quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Pe. Júlio Lancelotti, o apóstolo da fé e profeta do apostolado social no Brasil

Tive a alegria e o privilégio de conhecer esse grande profeta da fé e do apostolado social que é o pe. Júlio Lancelotti. Fui até a sua pároquia São Miguel Arcanjo, situada na Zona Leste de São Paulo. Me deparei com um grande homem, de olhar sereno e de voz mansa, marcado pelas cruzes da perseguição. Já na secretária da paróquia notei que era afeiçoado pelos santos, muitos santos. Perguntei a ele que linha seguia, ele me disse que seguia o Evangelho de Cristo. Tinha me referido as diferentes linhas de carismas na Igreja: RCC, Teologia da Libertação. Pe Júlio é aberto a todos os movimentos eclesiais, mas sempre com muito discernimento e cautela. Excessos há em todos os movimentos. Há que se buscar o que apóstolo Paulo disse: "Examinai tudo e ficai com aquilo que é bom!". Conversamos sobre a protestantinização do clero, os efeitos colateriais do modernismo na Igreja. O fato é que estão dando mais importancia para o estudo na Igreja, mas a missão e a questão social ainda está às traças. É importante clero bem formado, culto, povo bem formado e culto, entretanto, urge ir ao povo. Conversava com pe. Júlio que padre Dehon, apóstolo do coração de Jesus e profeta social dizia.: "O povo já não vem à Igreja...é preciso que a Igreja vá ao povo!" Mas infelizmente, não é isso que venho presenciando. Há muito o que fazer para que a Igreja possa se dizer missionária. O lugar de missão que refiro, pode ser qualquer lugar, mas o verdadeiro lugar de missão, de garimpagem, é o próprio homem! Seja onde for, encontraremos homens sedentos de Deus, sem esperança, sem voz e nem vez, despojados de sonhos e às margens da sociedade. Como não ser sensível e não enxergar o Coração de Jesus, que se faz frágil, nesses irmãos? Pe. Julio me levou a sua sala, cheia de santos, de livros. Me disse que chorou muito com um santo que amava muito: São João Eudes, o apóstolo do Sagrado Coração de Jesus. Pe. Júlio me ensinou naquela noite que quem realmente fez a experiência de Deus não pode se conter; já encontrou o que tanto procurava, e agora deve ajudar aos que mais precisam de ajuda na sociedade de hoje. Busca-se uma Igreja Missionária, despojada que vai com conteúdo anunciar Jesus! E não anuncia somente com as palavras, mas com a tradição da Igreja (sedimentação e inovação a partir da realidade) que não mede esforço para buscar os desgarrados, não pela apologética em si, mas pela qualidade de vida espiritual e humana. Procura-se pessoas dispostas a se imolarem no altar da vida em favor daqueles que perderam tudo o que é possível perder nessa vida. Como cristão, não devo falar somente das flores, devo falar dos espinhos que fazem sangrar o coração da humanidade! E mais do que falar, ser o milagre encarnado que não sabe esperar outro milagre para tomar as atitudes que devem ser tomadas, gerando fraternidade entre os homens e fazendo o Reinado Social do Coração de Cristo acontecer nas almas e na sociedade. Sei que o ibope não se rende ao avesso das flores que são os espinhos, e prefiro seguir assim, anunciando e denunciando! Diante da proposta de Cristo: "Quem quiser me seguir, toma a sua cruz e me siga" , alguém se habilita? Esta foi minha humilde homenagem ao padre Júlio, pois as homenagens devem ser feitas na vida e não depois que se passa dessa vida!

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Despedida: forma interessante de encontro

Caríssimos; Depois das palavras do amigo Rogério, arrisco algumas palavras. Último dia de aula, para três anos que convivemos juntos. Viver é relativamente fácil, conviver é tarefa e desafio que se impõe para uma vida toda. Tanta gente passou por nós, nós passamos pela vida de outras tantas pessoas e o que deixei nessa gente? O que deixaram em mim? Algumas pessoas passaram, outras ficaram... para ambas, que fiquem marcas positivas. Comemore por chegar ao fim, mas não se esqueça que nesse fim, há um começo. Vibre, mas não pense que houve vencedores e vencidos efetivos. Quem pensa que venceu, poderá tropeçar, quem pensa que perdeu, poderá se levantar. Pessoas são mais interessantes em seus avessos, onde há mais ser para além dos olhos que podem ver, pois desconcerta àqueles fixados na aparência. Agradeço a todos vocês por me ajudarem a fazer o que fiz por vocês. Não tive outro interesse a não ser o interesse de vocês. Não tinha que ser diferente. Foi um desafio enorme, responsabilidade grande ser um 'porta-voz' de pessoas brilhantes. Gelou o ser quando me delegaram essa missão. Poderia até saber de alguns riscos, mas não imaginava o que viria pela frente. Trago um sentimento bom sobre isso, não é fácil estar à frente de uma turma de Filosofia durante 3 anos. Exupéry dizia que o essencial é invisível aos olhos, que somos responsáveis por aqueles que cativamos. Hoje, devolvo a vocês, caríssimos, essa chave que vocês me confiaram no começo de 2007, certo de que poderia fazer mais, mas fiz até onde meu limite permitiu. Lembro-me da professora Glória dizendo que quem entrou na roda da Filosofia, não será mais o mesmo. Colheremos os frutos desses três anos ao longo da vida. Que tudo o que vimos em sala de aula possa ter nos auxiliado a sermos mais humanos uns para com os outros, a viver com mais qualidade de vida, no sentido existencial da mesma. Valeu a pena conhecer e conviver com cada um, cada qual, com sua vivência, seu jeitão único. O que resta a todos nós, como diria Milton Nascimento é tomar conta da amizade e soltar a voz nas estradas por onde andarmos. Semeando esclarecimentos, filosofando com o coração e com a vida, pois como diria Pascal, "o coração tem razões que a própria razão desconhece." Essas coisas do coração, a amizade, são aulas que a faculdade não deu, mas que a vida se encarregou de ensinar a cada um. Peço desculpas a todos por alguma palavra, algum gesto que tenha ferido alguém. Nesse instante que me faltam as palavras (a perplexidade e o silêncio é o começo da boa filosofia), recorro ao poema de Fernando Pessoa "Encerrando ciclos". Despedidas nem sempre são fins, mas constituem-se uma forma de encontro interessante com as pessoas e com a nossa história vivenciada. A cada um, meu abraço amigo e irmão, e a minha mão estendida quando precisarem। Avancem para águas mais profundas! Com estima e gratidão! Ricardo Ferrara Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final... Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos o que importa é deixar no passado os momentos da vida que já se acabaram. Foi despedida do trabalho? Terminou uma relação? Deixou a casa dos pais? Partiu para viver em outro país? A amizade tão longamente cultivada desapareceu sem explicações? Você pode passar muito tempo se perguntando por que isso aconteceu... Pode dizer para si mesmo que não dará mais um passo enquanto não entender as razões que levaram certas coisas, que eram tão importantes e sólidas em sua vida, serem subitamente transformadas em pó. Mas tal atitude será um desgaste imenso para todos: seus pais, seus amigos, seus filhos, seus irmãos, todos estarão encerrando capítulos, virando a folha, seguindo adiante, e todos sofrerão ao ver que você está parado. Ninguém pode estar ao mesmo tempo no presente e no passado, nem mesmo quando tentamos entender as coisas que acontecem conosco. O que passou não voltará: não podemos ser eternamente meninos, adolescentes tardios, filhos que se sentem culpados ou rancorosos com os pais, amantes que revivem noite e dia uma ligação com quem já foi embora e não tem a menor intenção de voltar. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas realmente possam ir embora... Por isso é tão importante (por mais doloroso que seja!) destruir recordações, mudar de casa, dar muitas coisas para orfanatos, vender ou doar os livros que tem. Tudo neste mundo visível é uma manifestação do mundo invisível, do que está acontecendo em nosso coração... e o desfazer-se de certas lembranças significa também abrir espaço para que outras tomem o seu lugar. Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos. Não espere que devolvam algo, não espere que reconheçam seu esforço, que descubram seu gênio, que entendam seu amor. Pare de ligar sua televisão emocional e assistir sempre ao mesmo programa, que mostra como você sofreu com determinada perda: isso o estará apenas envenenando, e nada mais. Não há nada mais perigoso que rompimentos amorosos que não são aceitos, promessas de emprego que não têm data marcada para começar, decisões que sempre são adiadas em nome do "momento ideal". Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará! Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo, sem aquela pessoa - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade. Pode parecer óbvio, pode mesmo ser difícil, mas é muito importante. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é. Torna-te uma pessoa melhor e assegura-te de que sabes bem quem és tu próprio, antes de conheceres alguém e de esperares que ele veja quem tu és. E lembra-te: Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão Fernando Pessoa

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A crise da verdade na pós-modernidade

Adentrando aos tempos atuais, é possível afirmar que o desinteresse pela verdade chegou ao limite do tolerável, a tal ponto que o homem moderno e contemporâneo acredita que a verdade e o falso, o certo e o errado já não existem mais. Esse espaço de reflexão se faz necessário para a conscientização e esclarecimento, sem regras ditatoriais ou relativismos obtusos, pois os extremos são sempre radicalizações. Fiquemos, então, com a radicalidade nua e crua da denuncia de Lauand: “Particularmente hoje, a crise da verdade assume proporções inéditas: em nosso niilismo pós-nietzchiano assumido, desarticulou-se a verdade, o ser e a unidade em favor da não-verdade, do não-ser e do não-uno.” (1) Lauand analisa que a harmonia trilogística entre verdade, ser e unidade foi desmantelada, e foi elevada a escalas jamais vistas em promoção da privação ou do obscurecimento da verdade, do ser e da unidade. Disso resulta que a lei da oferta e da procura possa pender mais para relativismos anacrônicos, verborragias que tendem ao nada do que para a beleza da verdade, seja ela útil, no sentido do conhecimento empírico e metafísico, ou, seja ela contemplativa no horizonte estético da arte. Tal como a chuva enche os oceanos, este processo de corrosão da verdade vem de longa data, a começar com os Pré-Socráticos na figura de Protágoras, passando pelas escolas céticas pirrônicas e acadêmicas, estendendo suas raízes na hermenêutica pós-contemporânea. Com relação aos pré-socráticos, Lauand considera que: “O clima intelectual hodierno... neste mundo de globalização, lembra mais a posição de Protágoras (c. 490 – c. 421 a.C), expressa na famosa sentença: “o homem é a medida de todas as coisas”. E assim cada um tem a sua própria verdade como tem sua própria religião, moral, filosofia, etc... O que importa é não pretender que sua verdade seja também para os outros.” (2) O que é importante marcar nessa análise de Lauand é a raiz do antropocentrismo em Protágoras que chega ao seu auge nos tempos atuais, onde a verdade subjetiva é exaltada em verso e em prosa em dicotomia com a supressão e obscurecimento da verdade. Em ambos os casos, uma possível relação entre verdade, ser e unidade constitui uma couraça rígida, indesejada para o âmbito do conhecimento. Continuando o percurso histórico, Lauand aponta que “ o ceticismo, em suas formas variáveis, é uma negação da verdade, geralmente acompanhada de angústia: o fato novo de nosso tempo é a exaltação dessa negação. Em todo caso, sempre o ceticismo procede de um ato de vontade e não da inteligência.”(3) Os céticos se enclausuraram na acatalepsia (4), que significa a impossibilidade do alcance da verdade. Eles se julgavam no direito da epokhé(5), ou seja, não atribuíam o juízo de verdade ou de falsidade, por alegarem desconhecer a verdadeira natureza das coisas. O objetivo da epokhé nos céticos é o alcance da ataraxia(6), a tranqüilidade da alma pela suspensão do juízo. A influência cética tem rastros na hermenêutica pós-contemporânea: “Esta negação da verdade acentua-se ainda mais no atual pensamento pós-moderno hermenêutico, que reduz a filosofia à literatura e maliciosamente alude a questão do ser e parece desconhecer que a existência enquanto tal é causa única de toda a inteligibilidade e de todo ato lingüístico.” (7) É perfeitamente possível haver profundas relações entre Filosofia e Literatura, ainda que essas tenham jurisdições bem definidas, todavia, não legitima o reducionismo da Filosofia à Literatura। Há também, na hermenêutica pós-contemporânea uma tendência de desvalorização da concepção do ser, verdade e unidade com extrema ênfase na dissolução do vínculo entre existência e intelecção. Tais posturas estão ancoradas na relativização e obscurecimento da verdade ao longo da História da Filosofia. (1) Verdade e Evidência. in: SPROVIERO, Mario Bruno. Verdade e Conhecimento. trad. Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.81 (2) Verdade e Evidência. in: SPROVIERO, Mario Bruno. Verdade e Conhecimento. trad. Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.82 (3) Verdade e Evidência. in: SPROVIERO, Mario Bruno. Verdade e Conhecimento. trad. Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.82 (4) acatalepsia em grego, que quer dizer literalmente incompreensibilidade (5) Epokhé em grego, que significa suspensão de juíz (6) Ataraxia em grego "... e também os céticos, com efeito, esperavam recobrar a serenidade do espírito com base em submeter em juízo a disparidade dos fenômenos e das considerações teóricas; porém, não sendo capazes de fazer isto, suspenderam seus juízos (epokhé) e, ao suspender seus juízos, os acompanhou como por sorte a serenidade do espírito (ataraxia), do mesmo jeito que a sombra segue o corpo." FILHO, Roberto Bolzani. O ceticismo pirrônico na obra de Sexto Empírico. São Paulo: Tese de mestrado, 1992, p. 29-30 (7) Verdade e Evidência. in: SPROVIERO, Mario Bruno. Verdade e Conhecimento. trad. Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.82

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O tempo e o TCC

A sigla TCC causa pânico para qualquer estudante. O temido TCC é um indesejado, inimigo número 1 dos acadêmicos que estão se formando todos os anos. A maioria dos estudantes, como bons brasileiros que são, costumam deixar as suas pesquisas, leituras e escritos para a última hora. Resultado disso são as noites em claro fazendo leituras, fichamento e escrevendo seu trabalho de conclusão de curso. Finais de semanas eles estão em frente aos livros, nas lan-houses, em seus computadores, pilhados para eliminar o TCC. Se talvez escrevessem uma hora por dia, durante um ano, seu trabalho teria muito mais qualidade do que fazer tudo na pressa e "nas coxas". Muitos chegam ao último ano sem ter a noção do autor que gostariam de pesquisar e a temática a ser abordada. Culpa dos professores ou dos estudantes? Diria dos dois. Dos professores, que nem sempre incentivam a pesquisa, além daquilo que se restringe a grande curricular do curso. Dos alunos, que por vezes são acomodados, que dançam conforme a lei de Gerson, limando maiores esforços e seus desdobramentos. Uma pesquisa que poderia ser prazerosa passa a ser uma tortura. Deixa-se de viver com qualidade, de ter momentos de lazer e diversão por pura falta de planejar e administrar o tempo. Vários filósofos e doutores da Igreja, como Agostinho e Tomás de Aquino já escreveram sobre o tempo. Não se pode perder tempo, não por que "Time is money!", mas porque "Time is sacred!" O tempo é sagrado e único e não volta nunca mais. Talvez você não tenha mais aquela oportunidade de conversar com aquela pessoa ou de fazer as coisas que deveria fazer no tempo do hoje. A sabedoria do livro do Eclesiastes nos ensina: "Existe tempo para cada coisa". Agostinho especula: "Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei." Eis a questão de Agostinho: como falar do tempo, com conceitos e palavras, que nas quais nem sempre me dão uma resposta satisfatória? Como traduzir uma coisa tão grande em conceitos que não abarcam o significado todo? Posso medi-lo, posso demarcá-lo, mas não posso conhecê-lo em si. Quando tento explicar o presente, este já é passado. Quando tento explicar o futuro, este já é presente que se tornará passado. Quando tudo se torna passado, só resta a memória do que aconteceu. Se não posso abarcar todo o seu significado, posso planejar o tempo. Sempre haverá imprevistos, mas um meio eficaz de dominar o tempo é planejá-lo, já que temos esse recurso de demarcá-lo em segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, décadas e séculos. Não perca tempo, não se perca no tempo... assim o tempo não te perderá...

Valéria: a representação da inocência em forma de gente

Dia 23 de Outubro, I Jornada Pedagógica na UNIP। Uma das coisas que mais me chamou a atenção, diante das belas explanações sobre a Educação e a Pedagogia na Unip, foi a história de Valéria. Uma criança, uma menina, uma mulher de 30 anos com a síndrome de Down, carrega marcas profundas de discriminações, preconceitos. Ouvi atentamente o relato do seu Pai aos futuros pedagogos. Família simples, humilde e sem o conhecimento do que vinha a ser a síndrome de Down, ao serem informados pelos médicos, após o nascimento de Valéria. Por um bom tempo, os pais de Valéria esconderam o fato para seus familiares do interior, com o argumento que a criança nascera prematuramente, e requereria cuidados mais específicos. Além de não saberem o que vinha ser tal síndrome, mal poderiam saber o que viria pela frente. E era chegada a hora de colocar Valéria na escola. A primeira, a segunda, a terceira escola... a diretoria não aceita crianças especiais, a quinta, a sexta e a sétima... a diretoria não educa crianças doentes, pois são incômodas! Tentaram a oitava e a nona e mais uma descarga impiedosa da discriminação e preconceito. Na décima, a secretária estava assinando a matricula, quando a diretora entrou e sala e perguntou o que ela estava fazendo. Ela respondeu serenamente que estava matriculando a criança. Então a diretora disparou: "Já não te disse que aqui não trabalhamos com crianças doentes!" Contrariada e resignada, cumpriu a ordem manifesta. Os pais, mais uma vez desolados, estavam indo embora, quando encontraram uma professora que os abordou. Dissera que havia escutado a conversa e que gostaria de interferir no caso. Interferiu tanto que conseguiu a matrícula de Valéria, que foi a sua aluna. Passado algum tempo, Valéria não podia mais ficar naquela escola, pois a educadora teve a sensibilidade de perceber que ela estava à frente das crianças especiais que havia ali e se permanecesse, ela poderia regredir. Estudou em outros colégios. Desde pequena, sempre se encantou com a dança, e os pais investiram. Depois de tudo o que ela passou hoje Valéria é orientadora pedagógica e trabalha com a professora, ou melhor, com a Educadora com E maiúsculo que ela encontrou em sua caminhada. Lá no auditório da Unip, Valéria foi chamada para dançar, e não disse nenhuma palavra. É que por vezes, os conceitos que insistimos ou que nos obrigam a armazenar em algum lugar no porão da mente, seqüestra os verdadeiros significados. A dança de Valéria, não me demonstrou uma dançarina exímia, uma por que não precisa, outra por que não sou crítico de dança. Límpida alma de Valéria, doce inocência, candura do alto que o mundo ainda hoje não se cansa de ignorar. Criança toda na mulher inteira, juro que eu queria dar a minha racionalidade para ter uma gota da sua inocência. Penso na família e nas crianças especiais do mundo inteiro que passam por isso que Valéria passou, mas que não conseguiram transpor a arrogância e o descaso de algumas "autoridades" educacionais que fazem tudo, menos promover o homem para além-fronteiras-de-si-mesmo. Ainda que as leis estivessem à favor das crianças especiais, os educadores e pedagogos não estão preparados para lidar com as crianças especiais. E ainda que sejam muito bons naquilo que fazem, não é a técnica que será decisiva, mas o seu coração, a sua humanidade de acolher essa criança especial como se fosse seu filho único. A história de Valéria é uma dentre milhões que ocorrem diante do nosso nariz e que passam desapercebidamente por nós. Dentre as diversas lições preciosas desse ensinamento, esta é a mais bela para a educação e o ensino: que as crianças não sejam adultos precoces e que os adultos possam trazer em si uma dose de inocência e gratuidade! Obrigado, Valéria, nem sei se terei a oportunidade de te reencontrar novamente... o que sei é que sua história encontrou morada em mim e eu já não posso mais me esquecer...