segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O que a Idade Média nos deixou? - Umberto Eco


"Ainda hoje usamos, em grande parte, a herança desta época. Embora conhecendo já outras fontes de energia, ainda usamos os moinhos movidos pela água ou pelo vento, já conhecidos dos antigos, na China e na Pérsia, mas que só depois do ano 1000 são introduzidos e aperfeiçoados no Ocidente. E parece que deste legado se deve fazer bom uso agora que, com a crise do petróleo, se reconsidera seriamente a energia eólica.
A Idade Média aprende muito da medicina árabe, mas em 1316 Mondino de Liuzzi publica o seu tratado de anatomia e efetua as primeiras dissecções anatómicas de corpos humanos, dando início à ciência anatómica e à prática cirúrgica no sentido moderno do termo.
As nossas paisagens ainda estão consteladas de abadias românicas e as nossas cidades conservam catedrais góticas onde os devotos ainda hoje vão assistir às cerimónias religiosas.
A Idade Média inventa as liberdades comunais e um conceito de livre participação de todos os cidadãos nos destinos da cidade, e ainda hoje as autoridades citadinas residem nos palácios destas comunas. Nestas mesmas cidades, surgem as universidades: a primeira aparece, se bem que em forma embrionária, no ano de 1088 em Bolonha; é a primeira vez que
uma comunidade de professores e estudantes, com os primeiros na dependência económica dos segundos, se constituiu fora do poder do Estado ou da Igreja.
Nascem nestas mesmas cidades várias formas de economia mercantil e nelas têm origem a banca, a carta de crédito, o cheque e a letra de câmbio. Mas são inúmeras as invenções medievais que nós ainda hoje usamos como se fossem coisas do nosso tempo: a chaminé, o papel (que substituiu o pergaminho), os algarismos árabes (adotados no século XIII com o Liber Abaci, de Leonardo Fibonacci), a contabilidade por partidas dobradas e, com Guido d’Arezzo, os nomes das notas musicais – e há quem mencione ainda os botões, as cuecas, as camisas, as luvas, as gavetas dos móveis, as calças, as cartas de jogar, o xadrez e os vitrais. É na Idade Média que se começa a comer sentado à mesa (os romanos comiam reclinados em leitos) e a usar garfo; e é também na Idade Média que aparece o relógio de escapo, antepassado direto dos relógios mecânicos modernos.
Ainda hoje assistimos com frequência a contendas entre o Estado e a Igreja e experimentamos sob formas diferentes o terrorismo místico dos entusiastas de outrora; é da Idade Média que herdamos o hospital, e as nossas organizações turísticas continuam a inspirar-se na gestão das grandes vias de peregrinação.
Inspirando-se nas pesquisas dos árabes, a Idade Média presta muita atenção à ótica, e Roger Bacon declarava que era a nova ciência destinada a revolucionar o mundo: 'Esta ciência é indispensável para o estudo da teologia e para o mundo… A vista mostra-nos toda a variedade das coisas, e por ela se abre o caminho para o conhecimento de todas as coisas, como resulta da experiência.'. E são os estudos de ótica, juntamente com a experiência dos mestres vidreiros, que conduzem à invenção, quase casual e de origens um tanto ou quanto obscuras (há quem mencione Salvino degli Armati, em 1317, e quem recue até ao século XIII, com Fra Alessandro della Spina), de uma coisa que desde então se não tem modificado muito: os óculos. À parte o uso que ainda hoje fazemos deles, os óculos exerceram uma influência de grande alcance na evolução do mundo moderno. Todos os seres humanos tendem a sofrer de presbiopia depois dos quarenta anos, e podemos considerar que numa época em que se lia por manuscritos, e durante metade do dia à luz de velas, a atividade de um estudioso se reduzia temivelmente a partir de uma certa idade. Mercê dos óculos, os estudiosos, os comerciantes e os artífices prolongaram e aumentaram as suas capacidades de aplicação. É como se as energias intelectuais daqueles séculos tivessem duplicado ou até decuplicado, subitamente. Se pensarmos como foi útil para o desenvolvimento científico norte-americano o facto de ter havido algumas dezenas de cientistas judeus que, fugindo ao nazismo, foram enriquecer a ciência e a técnica do Novo Continente (é em grande parte a eles que se deve o descobrimento da energia atómica e as suas aplicações), teremos uma pálida ideia do que a invenção dos óculos significou.
Finalmente, é nos últimos decénios da Idade Média que aparece no Ocidente a pólvora de tiro (provavelmente já conhecida dos chineses, que a utilizavam para efeitos pirotécnicos). Tudo muda na arte da guerra, e 18 anos antes do fim «oficial» da Idade Média, perante a nova invenção do arcabuz, Ludovico Ariosto cantará:

'Come trovasti, scellerata e brutta
invenzion, mai loco in alcun core?
Per te la militar gloria è distrutta:
per te il mestier de l’arme è senza onore;
per te il valore e la virtù ridutta
che spesso par del buono il rio migliore;
non più la gagliardia, non più l’ardire,
per te può in campo al paragon venire'
(Orlando furioso, XI, 26)

E assim começa verdadeiramente – sob tão terrível agoiro – a obscura Idade Moderna."

Fonte: ECO, Humberto. Idade Média: Bárbaros, Cristãos e Muçulmanos. Publicações Dom Quixote, p. 20-22, 2010.