quarta-feira, 24 de março de 2010
O estatuto epistemológico da música segundo Schopenhauer
Schopenhauer, em seu livro O mundo como vontade e representação - vol 1, apresenta com maestria uma possível epistemologia da música. A música, para o nosso filósofo em questão, seria uma totalidade daquilo que presenciamos na realidade, que traz em seu bojo uma universalidade que está em paridade com o peculiar das coisas. Todavia, não se trata de uma universalidade alienante, descompromissada com a realidade. Essa universalidade na qual Schopenhauer se refere se relaciona com a matematização dos objetos possíveis da experiência sensível, isto é, elementos da Geometria e os números que são formulas universais da empiria, aplicáveis a priori em qualquer circunstância e contexto. Esse material matemático da experiência, de certa forma, não é abstração, mas, antes de tudo, intuição, com característica de delimitação, demarcação. Dentro desta perspectiva intuitiva, tudo aquilo que ocorre na interioridade humana é passível de ser expresso por uma infinidade de melodias. Não estamos, ainda, no universo dos conteúdos, mas no universo das formas. A melodia, nessa etapa, não está sendo regida por nenhuma empiria, mas repousa naquilo que Schopenhauer chama de “em-si”. Fixemos essa gama de conceitos pela explanação do próprio filósofo:
“A música é, portanto, se considerada como expressão do mundo, uma linguagem universal em sumo grau, que até mesmo para a universalidade dos conceitos está mais ou menos como esta está para as coisas singulares. Sua universalidade, porém, não é de modo algum aquela universalidade vazia da abstração, mas é de espécie inteiramente outra e está ligada a uma completa e clara determinidade. Equipara-se a isso às figuras geométricas e aos números, que, como formas universais de todos os objetos possíveis da experiência e aplicáveis a priori a todos, não são no entanto abstratos, mas intuitivos e completamente determinados. Todos os esforços, emoções da vontade, tudo aquilo que se passa no interior do homem, e que a razão lança no amplo conceito negativo de sentimento, pode exprimir-se pelas infinitas melodias possíveis, mas sempre na universalidade da mera forma, sem o conteúdo,sempre segundo o "em-si", nunca segundo o fenômeno, como que sua alma mais íntima, sem o corpo.”
Essa estreita relação que a música tem com a essência das coisas, de certa maneira, justifica todas as vezes quando estamos ouvindo uma música, uma peça musical, uma sinfonia, nos identificamos prontamente com a música que está sendo executada. E essa correspondência não ocorre sem uma entrega radical, sem reservas à música que está sendo executada, pois, ao contrário, o visgo musical não seduziria a quem pudesse estar a escutar alguma música. Quando alguém se entrega sem medidas à música, não fica isento da atividade do visgo musical: recorda-se de muitas circunstâncias do passado, muitas lembranças vem à tona, daquilo que está vivendo no momento, como um vulcão ativo ao liberar seu magma. Aqui é retirado o véu das coisas, pois quem está a escutar, identifica a melodia com determinado período de sua existência, que de tal maneira tocado por sua ação, não pode ser o mesmo quando estava a escutar pela primeira vez. Esse desvelamento do ser está no processo do vir-a-ser, por isso é inesgotável o que revela a quem aprecia uma obra musical. Cada execução é uma surpresa, uma novidade. Seja por causa da operação desse visgo musical, seja pela disposição humana no exato momento em que está exposta a essa ação da música. Todavia, em um instante racional, ele já não consegue localizar o nexo entre música e realidade. Mais uma vez, com a palavra, Schopenhauer:
“A partir dessa íntima relação que a tem com a essência verdadeira de todas as coisas, pode-se também explicar por que, quando soa uma música adequada a alguma cena, ação, evento, circunstância, esta nos parece abrir seu sentido mais secreto e se introduz como o mais correto e mais claro dos comentários: do mesmo modo que, para aquele que se abandona inteiramente ao impacto de uma sinfonia, é como se ele visse passarem diante de si todos os possíveis eventos da vida e do mundo: contundo, quando presta atenção, não pode identificar nenhuma semelhança entre aquele jogo sonoro e as coisas que pairavam diante dele.”
A música, na verdade, se distingue das mais variadas artes não por ser uma mera reprodução da experiência, o que não é. O que verdadeiramente faz a diferença é aquilo que o filósofo chama de “objetividade adequada da vontade”, ou seja, a música é, no fundo, uma mímesis volitiva, que expressa que para cada exemplar sensível, há um correspondente metafísico. A partir disso, poderíamos chamar a realidade, de música volitiva encarnada. Possivelmente, isso explica efetividade da vida na realidade, o surgimento da pintura derivada da música, quanto mais for estreita a correspondência melodia e essência das coisas, como afirma Schopenhauer:
“Pois a música, como foi dito, difere de todas as outras artes por não ser cópia do fenômeno ou, mais corretamente, da objetividade adequada da vontade, mas cópia imediata da própria vontade e, portanto apresenta, para tudo o que é físico no mundo, o correlato metafísico, para todo fenômeno a coisa em si. Poder-se-ia, portanto, denominar o mundo tanto música corporificada quanto vontade corporificada a partir disto, pois, pode-se explicar por que a música logo faz aparecer toda pintura, e, aliás, toda cena da vida efetiva e do mundo, em significação mais elevada; e isto, sem dúvida, tanto mais quanto mais análoga é sua melodia ao espírito interior do fenômeno dado.”
O material intuitivo não tem uma relação de necessidade com a universalidade da música; ainda constituem uma arbitrariedade para o universal. Somente revelam a delimitação da efetividade, enquanto a música retrata na universalidade da forma. Dito de maneira mais simples, os conceitos possuem o formato das coisas, a exterioridade, e nesse sentido são abstrações puras. Entretanto, a música fornece a tônica primordial que antecede qualquer composição. Mesmo que Schopenhauer coloque essa consideração, ainda acha possível uma aproximação entre composição e representação intuitiva, aspectos diferentes que apontam para a mesma essência das coisas. Essa dialética, que desemboca no fundamento último das coisas, faz com que o compositor transcreva em palavras as nuances da emoção que a vontade exprime e que é o âmago da universalidade da música. Dessa maneira, a obra musical é considerável, segundo o nosso filósofo:
"Tais imagens singulares da vida humana, associadas à linguagem universal da música, nunca estão ligadas a ela ou lhe correspondem como necessidade completa; estão para ela apenas na relação de um exemplo arbitrário para um conceito universal: expõem na determinidade do efetivo aquilo que a música enuncia na universalidade da mera forma. Enquanto os conceitos contêm somente as primeiras formas abstraídas da intuição, como que a casca exterior tirada das coisas, e, portanto são, bem propriamente, abstrações, a música por sua vez dá o mais íntimo núcleo que precede toda formação. Mas em geral é possível uma referência entre uma composição e uma representação intuitiva, isso repousa, como foi dito, em que ambas são apenas expressões inteiramente diferentes da mesma essência interna do mundo. Ora, quando no caso singular, tal referência existe efetivamente e, portanto, o compositor soube enunciar as emoções da vontade que constituem o núcleo de um acontecimento dado na linguagem universal da música: então a melodia da canção, a música da ópera é expressiva.A analogia encontrada pelo compositor entre ambas, porém, tem de proceder do conhecimento imediato da essência do mundo, sem que sua razão tenha consciência disso, e não pode, com uma intencionalidade consciente, ser imitação mediada por conceitos: do contrário, a música não enuncia a essência interna, a própria vontade; imita apenas, insuficientemente, seu fenômeno; como o faz toda música propriamente descritiva (...)"
A comparação melodia-fundamento das coisas, mediada pelo compositor passa pela ótica do conhecer imediato do fundamento das coisas, sem a intervenção da razão e sem a intervenção da intenção, conceito esse, diga-se de passagem, tão banalizado pela pós-modernidade quando apela por uma subjetividade exagerada. Do contrário, a música não trará o fundamento inquebrantável das coisas; a vontade apenas será uma imitação imperfeita da realidade, como por exemplo, a partitura. Ela é uma tentativa de objetivização e matematização da música, retalhada em tempo, espaço, colcheia, semicolcheia, etc., mas que permanece sem emoção, sem vida, quando não há quem possa executar, ou se o músico se limita apenas a executar o que lhe informa a partitura. Que fique claro: não nego a importância da partitura, somente indico que o músico que tem a técnica não ficar preso a ela. Senão, fica escravo da técnica e não faz a verdadeira música que desvenda do ser e a realidade, e faz dessa relação algo inédito.
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