terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A brevidade da vida em Sêneca

Porque Sêneca se dedicou a escrever sobre a temática da brevidade da vida? É importante salientar que em nenhum momento Sêneca quis conceber uma filosofia original, pois segue uma tradição helênica de sua época. Isso significa dizer que o seu pensamento possui marcas profundas do pensamento estóico, platônico e aristotélico. Isto não é bem visto ao olhos dos cientistas modernos, que cravaram tanto para Sêneca, quanto para Cícero, ambos pensadores romanos, escritores de menor magnitude, uma vez comparado com pensadores que perseguiram uma certa originalidade por assim dizer, como Platão e Aristóteles. Em todo caso, o erudito que se preze, deve necessariamente percorrer os grandes temas da Filosofia, como por exemplo, a verdade, a vida, o erro, a morte, e a brevidade da vida está inserida no contexto dos grandes temas tratados pelos pensadores que marcaram a história da humanidade, de uma certa maneira. Sêneca, de certa forma, realiza uma releitura de temas recorrentes. E qual seria a relevância de tratar sobre a brevidade da vida para Sêneca? Antes de entrar na temática, é salutar entender que a estrutura textual é a da carta, que caracteriza o escrito em uma relação de amizade (philia), de proximidade. Há uma nítida preocupação com o interlocutor, no sentido do autor antecipar-se ao interlocutor no que se refere suas possíveis dificuldades. Sendo assim, a estrutura de carta nada mais é do que uma narrativa. Dentro dessa narrativa, Sêneca está a procura da compreensão sobre a condição humana, condição essa marcada pela égide da fragilidade, finitude. O homem está submerso no tempo (khronós) , dimensão sucessiva de passado, presente e futuro. O passado já é um velho conhecido, o futuro é incerto e causa medo e o presente uma mistura de passado e futuro no qual o indivíduo está inserido. Ao questionar sobre as suas próprias fragilidades, o indivíduo se coloca à margem de sua própria finitude, por assim dizer, e esbarra com a eternidade (aion). Porque o indivíduo precisa da eternidade para compreender sua própria condição humana?Não sendo fácil para qualquer homem viver o tempo presente, ele necessita de uma perspectiva superior e metafísca, pois suas carências e fragilidades o confrontam e o inquietam a todo instante. E a eternidade tem a finalidade de ser a ausência do tempo, privação de ciclos, sinônimo de permanência, estabilidade e imutabilidade. O tempo, ao contrário, é a contínua sucessão de movimento entre presente, passado, futuro. Contudo, se podermos estabelecer um princípio imutável para o tempo, esse princípio é a própria mudança, alteração. Logo no começo da brevidade da vida, Sêneca critica a postura daqueles que associam a brevidade da vida como sendo um castigo, uma praga divina. E por qual motivo a morte seria um castigo divino?Dentro dessa questão de cunho teológica, é necessário estabelecer duas considerações a cerca da impressão do homem sobre si mesmo e sobre a temporalidade. Uma primeira consideração que precisa ser colocada é que o homem concebe-se eterno, imortal, considera que as desventuras da vida, bem como as desgraças sempre se dão com os outros, nunca com ele mesmo. Dentro desse registro, não estamos longe, de forma nenhuma do homem contemporâneo. Uma segunda consideração que também precisa ser colocada é a concepção de que o homem considera que o tempo é eterno, ou seja, infinito. Uma vez que o homem assevera que o tempo é ilimitado, pode se dar ao luxo de desperdiça-lo da forma como achar conveniente. Novamente, não estamos distantes do individuo hodierno. Tanto na primeira, quanto na segunda considerações há a impressão humana da eternidade que duela o tempo todo com a realidade temporal. Na primeira, o indivíduo considera-se eterno, mas está orientado nos limites da finitude, da temporalidade, das suas próprias carências e fragilidades. Na segunda, o indivíduo considera o tempo como eterno, mas o tempo é caracterizado pela sucessão de presente para o passado e futuro em presente. Em ambas as observações, o indivíduo confunde os limites eternos com os limites temporais.E quais as consequências desse individuo ser indiferente consigo mesmo e com o tempo que é dado a ele para viver? O indivíduo que pensa que é eterno, é autosuficiente, pronto, acabado, não vê e nem sente a necessidade de depender de ninguém para o que quer que seja. Passa a ser indiferente ao outro, pois não entende que possa depender dele. Mais ainda: se o indivíduo se considera ilimitado, ou seja, não julga necessitar de nada e ninguém, para ele o tempo também será eterno, o que fará com que ele se prenda à aquilo que não é realmente importante, o efêmero (epi + hemeros). E o que seria o efêmero para Sêneca? Seria o não seguir a natureza (kata – physin), é considerar o eterno como passageiro e o passageiro como absoluto. Isso fará com que o individuo caia na indiferença com os outro e ao tempo, terminando na superficialidade das coisas, como por exemplo na acumulação de riqueza. O que seria seguir a natureza? Para o estoicismo, a natureza possui dois princípios: passivo (ausência de qualidades e matéria) e ativo (age na matéria e molda a sua razão de ser). De uma certa maneira, abarca a razão e também a divindade. Seguir a natureza corresponde a não contrariar a razão universal, na qual todas as coisas e o próprio homem está inserido. Com a palavra, Sêneca, que segue à risca o estoicismo: “... como todos os estóicos, saibas que sigo a natureza” é sábio não se distanciar dela e obedecer a seu exemplo e lei. A vida feliz é, pois, aquela adequada à natureza...[1] Porque a acumulação de riquezas poderia ser considerada como uma efemeridade? Porque o indivíduo que pensa em acumular, em tese, estaria unica e exclusivamente preocupado com o futuro e com o seu amanhã, não dando a menor importância para o presente na qual está inserido. Pensa em ter abundantes bens quando abater sobre ele os dias maus e desventurosos, mas não se dá conta que o presente está correndo como um líquido que foge às mãos. A preocupação de Sêneca, I d.C sobre o dia de hoje é a mesma preocupação de Horácio I a.C, em seu poema Ode (I, XI): "Tu não procures, conhecer não deves, o fim que a mim, A ti concederam os deuses, ó Leucone, nem experimentes os números babilônicos. Melhor sofrer o que quer que seja! Seja muitos invernos, seja o último que Júpiter te concedeu, e que agora o mar Tirreno quebra contra os rochedos, sejas sabia, filtre os vinhos, e pelo curto espaço de tempo suprimas qualquer longa esperança. Enquanto falamos, o tempo invejoso foge: aproveita o dia, (carpem diem) muito pouco crédula no que virá.” Eis aqui o trecho do famoso trecho do carpem diem, cuja a tradução mais aproximada é a do colher o dia. A preocupação horaciana se aproxima de Sêneca no sentido de que o hoje tem a necessidade de ser vivido intensamente, sem maiores apegos no que virá no dia de amanhã e que os homens possui a estranha tendência de informação sobre o que virá e sobre qual seja o seu fim. Assim se encontram fazendo planejamentos minuciosos e calculistas, debruçando-se somente sobre o que virá, e portanto, dando as costas ao seu tempo presente. E o que justificaria o homem acumular e planejar o futuro? Já que o passado é conhecido do homem, o já foi, e o presente, de uma certa forma, já ser conhecido, o amanhã causa medo e pavor pois é uma fronteira desconhecida para o homem. E para se precaver e cercar-se de cuidados, às vezes de perigos imaginários e até ilusórios, ele apega-se às coisas materiais, bem como a acumulação de riquezas e esquece de colher o dia que generoso a ele se oferece. Até mesmo Jesus de Nazaré, que se coloca entre Horácio e Sêneca, longe de ter preocupações puramente teóricas e filosóficas sentenciou: “ (15) ... Acautelai-vos e guardai-vos da avareza; porque a vida de qualquer não consiste na abundância do que possui. (16) E propôs-lhe uma parábola, dizendo: A herdade de um homem rico tinha produzido com abundância; (17) E ele arrazoava consigo mesmo, dizendo: Que farei? Não tenho onde recolher os meus frutos. (18) E disse: Farei isto: Derrubarei os meus celeiros, e edificarei outros maiores, e ali recolherei todas as minhas novidades e os meus bens; (19) E direi a minha alma: Alma, tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e folga. (20) Mas Deus lhe disse: Louco! esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? (21 ) Assim é aquele que para si ajunta tesouros, e não é rico para com Deus. (22) E disse aos seus discípulos: Portanto vos digo: Não estejais apreensivos pela vossa vida, sobre o que comereis, nem pelo corpo, sobre o que vestireis. (23) Mais é a vida do que o sustento, e o corpo mais do que as vestes. (24) Considerai os corvos, que nem semeiam, nem segam, nem têm despensa nem celeiro, e Deus os alimenta; quanto mais valeis vós do que as aves? (25) E qual de vós, sendo solícito, pode acrescentar um côvado à sua estatura? (26) Pois, se nem ainda podeis as coisas mínimas, por que estais ansiosos pelas outras? (27) Considerai os lírios, como eles crescem; não trabalham, nem fiam; e digo-vos que nem ainda Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles. (28) E, se Deus assim veste a erva que hoje está no campo e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé? (29) Não pergunteis, pois, que haveis de comer, ou que haveis de beber, e não andeis inquietos.” [2] O Nazareno questiona sobre o questionamento excessivo sobre o dia do amanhã, pois a preocupação excessiva sobre o que virá, nos desviaria do dia de hoje, das preocupações decorrentes do hoje. E porque viver o dia de hoje é mais importante do que se debruçar sobre o amanhã? As preocupações do dia de hoje seriam reais, pois o dia de hoje está acontecendo neste exato momento, e requer toda a nossa diligência, atenção e cuidado para bem viver o hoje com toda a intensidade possível. As preocupações do dia de amanhã são irreais comparadas ao hoje, pois o amanhã ainda é uma possibilidade que ainda não chegou. É por isso que devemos escolher viver o hoje, com todas as suas preocupações e possibilidades, que são reais do que o amanhã que é mera virtualidade e potência, que são irreais sob a ótica do que se manifesta a nós, ou seja, a do hoje. Abrir-se as possibilidades do dia para não se fechar nas próprias expectativas. Mais uma vez o embate entre a imaginação e a realidade. Qual é o caminho para a superação da brevidade da vida? Sêneca responde que o caminho para a superação da brevidade da vida é o distanciamento, a meditação, pois é com ela que o sujeito necessariamente reconhece a efemeridade humana e pode ser capaz de fornecer uma resposta a altura de sua questão sobre o efêmero e o vão. Todavia, não realiza essa meditação de forma ilesa ao tempo. O ocupar-se da meditação necessita de tempo, e está no ócio (scholê). O ócio da meditação é o oposto ao ócio do desperdício do tempo. Enquanto na meditação, o sujeito reflete sobre sua vida, com a finalidade de imprimir em sua existência intensidade e qualidade, no que se refere ao dia de hoje, o ócio do desperdício do tempo é o passatempo daqueles que se julgam o tempo e eles próprios eternos e utilizam o tempo como se fossem ilimitados, como se não fossem passar pela morte. O sujeito sofre uma afecção externa, que produz uma paixão (pathós). Essa paixão (pathós) pode resultar em uma ação prática, criação (poiésis). Há casos em que a afecção externa sensibiliza o sujeito e ele não responde. E qual seria a motivação de não responder? Talvez possa ser por estar bem instalado e acomodado na sua situação atual e não querer se deparar com uma mudança, que significaria, de certa maneira, uma ruptura com o seu estado atual, uma reorganização que não é conhecida e que gera um certo incômodo e desconforto. A compreensão da identidade passa pela perspectiva de viver em função da paixão e em função da criação. O processo de criação põe um fim à indiferença que havia quebrado o ciclo da poiésis. Quebrando a indiferença, posso fazer o bem e a partir desse bem feito a alguém encontrar a minha própria renovação, pois o que há de melhor no homem é tornar-se melhor homem a cada momento. Na intervenção humana do fazer o bem a alguém, o agente que realiza o bem continua, renova-se na relação com o indivíduo receptor deste bem. A virtude (aretê) aqui se desvela como a possibilidade humana de intervir em favor do próximo. E a virtude não está na palavra, nas no ato concreto, conforme Sêneca: A filosofia não é uma habilidade para exibir em público, não se destina a servir de espetáculo; a filosofia não consiste em palavras, mas em ações. O seu fim não consiste em fazer-nos passar o tempo com alguma distração, nem em libertar o ócio do tédio. O objetivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos actos, em apontar-nos o que devemos fazer ou por de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua à deriva entre escolhos. Sem ela ninguém pode viver sem temor, ninguém poder viver em segurança. A toda hora nos vemos em inúmeras situações em que carecemos de um conselho: pois é a filosofia que no-lo pode dar.” [3] A Filosofia não é puramente teórica ou especulativa; as reflexões proporcionadas por ela deve necessariamente levar a uma atitude prática. Assim, ela também poderia ser considerada como um remédio, terapia que ocasionará ao indivíduo o bem viver. Essa orientação do bem viver está diretamente relacionado com a natureza humana, tema esse que os estóicos já haviam se debruçado e Sêneca apenas irá fazer uma recapitulação.E porque haveria a necessidade de fazer o bem, da ação virtuosa? Ninguém nasceu pronto, já previamente estabelecido, mas em condições de aperfeiçoamento (teleousi). Se o indivíduo chegou à consciência de aperfeiçoamento, necessariamente passou pelo processo reflexivo, dedicando-se ao ócio criativo do pensamento crítico e centrado, que se opõe diametralmente ao ócio do desperdício temporal, e que se opõe ao negócio, a negação de qualquer espécie de ócio. Qual seria a vantagem de superar a brevidade da vida? A superação da brevidade da vida consiste em uma vida bem vivida, com intensidade, centrada no hoje. Isso representa uma vida qualitativa que se opõe drasticamente a vida quantitativa, uma vida observada apenas em sentido numérico, na qual surge espontaneamente a distinção entre viver (qualitativo) e existir (quantitativo). Isso somente seria possível graças à meditação que nos levaria à felicidade que corresponde à vida contemplativa (bios theoretiké). Cabe ao homem tornar o tempo oportuno (kairós) de seu aperfeiçoamento (teleousi).

[1] Sêneca, L. A. A vida feliz. III. p. 27.

[2] Lucas 12, 15- 29 - http://ie6.bibliaonline.com.br/acf+acf/lc/12

[3] Sêneca, L. A. Cartas a Lucilio. carta 16, 3. p. 55.

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